DAVI SCATOLIN & MATHEUS KLEIM
JOGO $UJO
QUANDO ESPORTE, POLÍTICA E ECONOMIA DIVIDEM O CAMPO
Arabia Saudita e o "futebol estatal"
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Foto: Carlo Fumagalli/AP
"Na Europa, meu trabalho está feito", afirmou Cristiano Ronaldo em sua chegada ao futebol saudita
Os outros exemplos de sportswashing citados nesse site deixam claro que essa manobra geopolítica está longe de ser uma novidade. Mas por qual motivo ela tomou os noticiários e debates acadêmicos nos últimos meses? A resposta para isso está no crescimento das investidas dos magnatas sauditas sobre o mercado do futebol europeu, o que criou em questão de dias um campeonato repleto de craques de grande apelo popular e, consequentemente, deu a Saudi Pro League - a liga saudita de futebol - um interesse midiático ímpar em sua história.
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Historicamente, o futebol mundial tem como seu centro as grandes ligas da Europa - mais especificamente as ligas inglesa, espanhola, italiana e alemã - onde se concentrava a grande maioria dos melhores atletas do mundo. Essa estrutura se desenvolveu ao longo da segunda metade do século XX e vinha se mostrando totalmente consolidada desde a virada para o século XXI. Em outras palavras, era inconcebível ver um jogador de “primeira prateleira” atuando fora do solo europeu.
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Por esse motivo, a lista de jogadores que deixaram os grandes clubes europeus para atuar no futebol árabe gerou tamanho estranhamento. Essa fila inicialmente puxada por Cristiano Ronaldo em 2022, e posteriormente seguida por Neymar Jr, Karin Benzema, Sadio Mané, Roberto Firmino, N’golo Kanté, Riyad Mahrez, Jordan Henderson, Fabinho, entre outros, significa um rompimento com o status quo consolidado ao longo de décadas.
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O investimento médio-oriental no futebol europeu não é novidade, mas até pouco tempo era feito de forma velada e “silenciosa”, com empresas e governos da região apenas patrocinando clubes ou contratando jogadores em fases decadentes de suas carreiras. A partir das recentes contratações citadas anteriormente, esse investimento passou a ser muito mais explícito e com cifras cada vez maiores. Daí vem o questionamento: qual o verdadeiro interesse em ter uma liga esportiva forte e, mais elementarmente, qual a origem do capital utilizado para convencer atletas de alto nível a abandonarem os holofotes da Europa e colocarem em risco suas carreiras?
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A origem do investimento dos clubes sauditas é completamente diferente ao que estamos acostumados no futebol brasileiro e europeu. Enquanto no ocidente esse dinheiro provém de patrocínios, venda de ingressos, comercialização da imagem do clube, direitos de transmissão, etc. (ou seja, transações e relações entre o clube e órgãos privados), o futebol árabe é abertamente aportado pelo Public Investment Found (PIF), um fundo de investimentos estatal. Em linhas gerais, o PIF é uma ferramenta do governo para desenvolver, consolidar e expandir a economia saudita, visando atingir os objetivos do Vision 2030 - um quadro estratégico concebido pela liderança do Reino para diversificar a economia e reduzir a dependência do petróleo. O Fundo atua com investimentos domésticos e internacionais, inclusive com atuação em solo brasileiro, como publicado no balanço financeiro de 2022.
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Baseado nesse mesmo balanço financeiro disponível para acesso público no site do Fundo, o PIF visa o desenvolvimento de quatro “giga-projetos”: NEOM, ROSHN, Qiddiya, and Red Sea Global. Segundo explicação encontrada no documento “todos estes projetos partilham a amplitude de ambição e uma escala de atividade que é verdadeiramente transformacional; os seus objetivos são apoiar novas indústrias, setores e empresas que acabarão por criar novas oportunidades econômicas que beneficiarão a Arábia Saudita”.
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Ainda que todos esses giga-projects estejam estrategicamente ligados entre si, o que mais diz respeito aos investimentos esportivos é o Qiddiya, um novo destino global focado em oferecer inovador e envolvente entretenimento, esportes, artes e experiências culturais. Na página de apresentação desse projeto lê-se ainda: “Qiddiya assinou importantes acordos de patrocínio com os principais clubes de futebol sauditas, Al Hilal FC e Al Nasr FC. Estas parcerias estratégicas valem SAR100 milhões para cada clube e refletem o crescimento perfil internacional do futebol na Arábia Saudita”. Não obstante, em junho de 2023, o PIF assumiu o controle dos quatro principais times da liga (Al Hilal, Al Ahli, Al Nassr, e Al Ittihad), ao tomar para si 75% da sociedade de cada clube. Em outras palavras, os clubes que anteriormente recebiam “apenas” aportes governamentais, agora são oficialmente empresas estatais.
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O resultado dessa nova gestão não demorou a aparecer: Al Hilal contratou Neymar Jr. (90 milhões de euros), Al Ahli contratou Riyad Mahrez (30 milhões de libras) e Roberto Firmino (salário de 22 milhões de euros por temporada), Al Nassr, que já contava com Cristiano Ronaldo, contratou Sadio Mané (40 milhões de euros).